Páginas

MONOGRAFIA

Trajetórias históricas das populações
 formadas à margem da sociedade nacional
UFMG - 2003
Ib Campos de Oliveira


Monografia de conclusão de curso apresentada para obtenção do título de graduação em Antropologia.

Orientador: Prof. Juarez Guimarães

AGRADECIMENTOS
Aos colegas(João, marcelo, levindo, letícia, pedro, júlio, ronnie, alice leticia, rodrigo, clarisse, maria, raissa, mirian, flávia, tais, rosana, wilson)  de graduação pelo espírito de convivência.
Aos professores(cleonice, andré, léa, francisco, andrea, carlos, leonardo, joão, noronha, renan, renard, claudio, chico, paula, simone, fátima) .
Ao professor Nilso.
À Dircéa pelo empenho e atenção.
Ao Prof. Juarez Guimarães pela confiança.
Aos amigos que contribuíram nos momentos difíceis.
À minha família, pelo incansável esforço em ajudar.
À Amanda, pela sua capacidade de aguçar os sentidos do amor para a vida.
Dedico aos meus pais – Henrique e Baby,
devido aos anos de vida pública.

“Quando se julga que as noções econômicas 
nasceram das necessidades de ordem material 
a serem atendidas, e que os termos que traduzem
essas noções só podem ter um sentido material, 
incorre-se num grave erro. Tudo o que se relaciona 
com noções econômicas está ligado a representações
muito amplas, que colocam em jogo o conjunto das relações 
humanas ou das relações com as divindades: relações complexas, 
difíceis, que sempre envolvem as duas partes”. (Emile Benveniste)




RESUMO

Este trabalho de pesquisa intitulado Trajetórias Históricas das Populações Formadas à Margem da Sociedade Nacional, tem como objetivo analisar a importância delas e verificar a sua contribuição no sistema sócio-econômico, político e cultural. Escolheu-se a pesquisa bibliográfica referendada nos aportes de uma literatura detalhada, de autores comprometidos com a temática em questão exemplo de Fernandes, Freyre, Kowarick, Malaguti, Oliveira, Rego, Franco e Santos. O trabalho tem três capítulos (introdução, referencial teórico, considerações finais) e a bibliografia. O segundo capítulo está estruturado em quatro partes, sendo que a primeira situa historicamente a população marginal e ressalta a distinção que a caracteriza como tal em relação ao sistema sócio econômico brasileiro; a segunda trata da época posterior a abolição da escravatura e da integração do negro na sociedade de classes; a terceira aborda a interpretação do contexto sócio-econômico do Brasil posterior a revolução de 1930, até o ano de 1964; a quarta apresenta o trabalho informal representado na atual conjuntura. Neste contexto, conclui-se que as populações criadas à margem da sociedade nacional são reflexos do processo de mudança sócio-econômica nacional que, paradoxalmente, não modificou a desigualdade social.



INTRODUÇÃO

A análise das populações marginais identificadas nos primórdios da história nacional com uma característica básica de ser expropriada, no entanto livre, isto é, ter liberdade, mas não possuir espaços sociais para exercê-la, é controversa. O grande desafio desta monografia é sistematizar grandes narrativas que procuram pensar estas trajetórias. Levanta-se a hipótese que os expropriados livres de ontem são os atuais e, como no passado, partem de faltas materiais para encontrar brechas, espaços para preencher as lacunas na organização sócio-econômica brasileira. Concluímos que as atividades produzidas por eles são fruto da criatividade necessária à suas estratégias de sobrevivência, dentro do sistema sócio-econômico brasileiro.

Essa configuração cultural nos revela que a realidade está marcada por pessoas que exercem alguma atividade sem correspondência com a organização legal do estado-nação. A informalidade avança em todos os sentidos e setores da economia nacional. E o que representa isso para o país? Será que o problema poderia ser solucionado com o desenvolvimento socio-econômico do Brasil? Com a ampliação de serviços legalmente amparados pelo Estado?

As constituições históricas formadoras da nação são o início da pesquisa, e sua configuração atual, o fim. O interesse de estudar parte das ações criativas ou alternativas que buscam outros caminhos para a sobrevivência parte do pressuposto de que não basta fazer uma relação entre os marginais dos séculos passados e os atuais. É necessário organizar as bases teóricas sobre os marginais de outrora para formular algo a mais sobre os atuais. Iniciamos a pesquisa com a formação histórico-nacional: a população que nasceu da dicotomia senhor/escravo e nessa se reproduziu. Atualmente, representada por ricos/pauperizados.

A partir dessas questões, procuramos elaborar a presente análise. A decisão foi a de utilizar a condição de estudante de Ciências Sociais (Antropologia), pesquisar esta realidade - tão próxima da vida cotidiana, buscar a compreensão das  indagações e estabelecer uma análise política que possa culminar com a monografia deste final de curso.

Assim, estabeleceram-se objetivos que se seguem.

Analisar as trajetórias históricas das populações formadas à margem da sociedade nacional.

Verificar a contribuição dessa população no sistema social, econômico, político e cultural brasileiro; investigar a relação entre informalidade e o desenvolvimento econômico nacional; investigar a importância do trabalho informal como modalidade de inserção social das populações marginalizadas.


METODOLOGIA

Pela importância do próprio objeto de estudo escolheu-se para respaldar esse trabalho, a pesquisa bibiliográfica.

Segundo Almeida Júnior ( 1995, p. 13), a pesquisa bibliográfica é:

Uma investigação a partir do material já elaborado, livros, revistas e artigos científicos relevantes para o objetivo do estudo. São muito utilizados em estudo exploratórios. É uma atividade de localização e consulta de fontes diversas de informação para coleta de dados a respeito de determinado tema.

Enquanto que Vergara (1997, p. 32) afirma que “este tipo de pesquisa fornece instrumental analítico para qualquer outro tipo de pesquisa, no entanto pode esgotar-se em si mesma”.

Para a realização deste estudo, fez-se um levantamento bibliográfico, escolhendo-se autores relevantes para o objeto de estudo. Em seguida, um fichamento com o objetivo de assegurar o registro das informações obtidas ao longo das diversas leituras e releituras realizadas.

A pesquisa bibliográfica se alicerça em muitos esforços, para que o trabalho seja efetivado. Segundo Mimayo (1992, p.57), as fazes desta pesquisa enquadram-se em:

De pesquisa bibliográfica, disciplinada, crítica e ampla; disciplinada porque devemos ter uma prática sistemática; crítica porque devemos estabelecer um diálogo reflexivo entre a teoria e o objeto de investigação escolhido; ampla porque deve dar conta do estado do conhecimento atual sobre o problema. De articulação criativa, seja na delimitação do objeto de pesquisa, seja na aplicação de conceitos. De humildade, ou seja, reconhecendo que todo conhecimento científico tem sempre um caráter.

Assim, procedeu-se com critérios, princípios, questionamentos, buscando vincular a pesquisa à realidade atual, condicionando-a a um enfoque histórico.



REFERENCIAL TEÓRICO
1- Contextualização histórica da população marginal ao final do século XIX

Estudos provam que desde o Brasil colônia, o trabalho desenvolvido pela população marginal tem como marca a exclusão social. No início da colonização, a produção da cana-de-açúcar e, conseqüentemente, o povoamento tiveram características próprias que definem um modelo de organização social.

No século XVII, quando a produção de cana-de-açúcar foi instalada pela metrópole portuguesa, surgiu uma sociedade escravocrata com características próprias. De acordo com Prado Júnior (1987, p. 41):

Ao contrário da cana-de-açúcar, onde encontramos a exploração em larga escala, neste setor [atividades acessórias] são outras formas e tipos de organização que vamos observar. Eles são, aliás, variáveis. Encontramos a produção de gêneros de consumo, em primeiro lugar incluída nos próprios domínios da grande lavoura, nos engenhos e nas fazendas. Estes são em regra autônomos no que dizem respeito a subsistência alimentar daqueles que os habitam e neles trabalham. 

A prática metropolitana constituiu-se, em todo ciclo da cana-de-açúcar, uma ordem socialmente formada por relações dicotômicas entre o senhor/escravo; a grande propriedade comportou pessoas agregadas e outras que serviços prestavam. E segundo Freyre (1964, 490):

A casa-grande fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos – amas de criar, nucambas, irmãos de criação dos meninos brancos. Indivíduos cujo lugar na família ficava sendo não o de escravos mas o de pessoas de casa.

A partir da rígida ordem senhor/escravo, formou-se uma população marginal ao longo da história. Esta, desvinculada dos processos essenciais à sociedade, não foi aproveitada totalmente nos engenhos de açúcar do século XVII e nem – posteriormente - no processo de desenvolvimento urbano. Com o passar das décadas, a sociedade colonial ganhou contornos novos, ampliou sua capacidade de produção ao introduzir outras culturas agrícolas; formou centros urbanos de relevância em todo litoral, que passaram a contribuir para a criação de mais serviços. Através das análises de Franco (1997, p. 14), verifica-se que:

Assim, numa sociedade em que há concentração dos meios de produção, onde vagarosa, mas progressivamente, aumentam os mercados, paralelamente forma-se um conjunto de homens livres e expropriados que não conheceram os rigores do trabalho forçado e não se proletarizaram. Formou-se, antes, uma ralé que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens a rigor dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade.

Estudar populações marginais que existiram na história do país apresenta o objetivo de rebuscar a questão do padrão metropolitano, da relação com a ordem colonial e, após a independência, a relação do Estado-Nação com a realidade social. Existe uma tensão entre atividades realizadas pela sociedade sem correspondência com a organização legal do Estado. Independentemente, essas populações se formaram com o povoamento da Colônia e ganharam dinâmica com a exploração do território nacional. Após a afirmação da vocação agrícola, através do cultivo da cana-de-açúcar e do tráfico de negros, a escravidão somou-se à constituição social e espalhou-se por todas as terras cultivadas. Nos limites desse sistema escravocrata, uma população foi nascendo e sobrevivendo até aos dias atuais.

Uma idéia de Rego (2000, 122) ilustra bem a questão tratada até aqui. Diz respeito ao contraste entre a configuração de uma relativa estabilidade das relações sociais que estruturavam a formação colonial e o fato de que, progressivamente, se tornavam mais presentes as camadas sociais compostas por aqueles que não eram escravos e nem podiam ser senhores.

Prado Junior (1987, p.45) afirma que havia uma população não formada  por proprietários da terra ou por escravos, ao exercer atividades acessórias, e, ao fazer investidas para o interior do Brasil pelo Vale do São Francisco com rebanhos de gado, fugindo da seca e buscando encontrar melhores pastos. As atividades acessórias vieram somar esforços ao desenvolvimento interno.

Essa população tem a sua característica básica definida como sendo formada por homens livres, não participantes diretamente do sistema agro-exportador estabelecido pela metrópole. São os mesmos que passaram a viver no interior do país. De acordo com Franco (1997, p. 41):

Nos grupos caipiras o divertimento girava em torno das oportunidades oferecidas pela convivência. Nas cidades, além do convívio nas casas de famílias, nas praças, boticas e armazéns, podia-se encontrar, parcimoniosamente, é verdade, com jornais e livros e com a aparição esporádica de teatros e circos. Na roça, contudo, eram mais escassas as oportunidades de diversão independente: apenas a caça e a pesca poderiam ser enumeradas nessa classe de atividade. Era assim inevitável que as pessoas se entretivessem fundamentalmente umas com as outras. Era nos centros de reuniões, como as vendas e armazéns, que transcorriam, as atividades lúdicas regulares dessas populações.

A partir deste ponto pode-se levantar a hipótese de que - no processo de constituição da sociedade brasileira - a sobrevivência dessa população foi produto dos espaços sociais, possibilitados por lacunas presentes dentro da ordem social da colônia.

A “casa grande”, símbolo patriarcal de latifúndios monocultores de cana-de-açúcar, foi o primeiro centro agregador de culturas. Mesmo com uma grande imobilidade social, permitiu o convívio entre o senhor português, a índia com quem ele se casava e o negro que o alimentava. Freyre (1966) coloca que se encontravam membros das três raças que, em contraste com a técnica de produção agro-exportadora imposta pela Metrópole, geraram uma organização social de rigorosa imobilidade, mas de grande flexibilidade cultural. Talvez, pelas características próprias do povo português (ou pelo instinto de sobrevivência), o que se constituiu no Brasil foi mesmo a preservação de aspectos - pedaços flutuantes de um continente ou arquipélago presente em cada povo - tribo ou nação, formando, desse modo, uma estrutura social capaz de suportar os antagonismos econômicos e as dificuldades geográficas, proporcionando uma complementação efetiva e não apenas a diversificação economicamente antagônica. É possível imaginar que, aí também, a população marginal teve sua expressão, pois a diversidade cultural do Brasil reafirma sua presença.

Entre 1780 e 1790, algumas mudanças no cenário econômico colonial favoreceram a formação de uma ordem social um pouco diferente da já decadente sociedade produtora de cana-de-açúcar. A exploração do ouro se consolida como a atividade mais rentável da colônia, e, posteriormente, a produção de café, produto de exportação nacional no século XIX.

A chegada da família real, em 1808, produziu um marco para a história do Brasil que assumiu o status de Reino Unido de Portugal. A presença do rei não alterou a estrutura das relações de produção, mas sua influência. Do mesmo modo, como as leis da monarquia, ganharam mais efetividade.  As faixas territoriais dos senhores passaram a “abrigar” movimentos de uma organização sócio-política de caráter urbano. Ocorreu uma mudança lenta no cotidiano das relações senhor/escravo. O rei procurou diminuir o poder dos proprietários e consolidar o meio urbano como centro administrativo. A partir dessa situação, as cidades foram constituindo-se ao longo do século XIX, como centro administrativo e burocrático, lugar do funcionalismo público.

Aos poucos, percebe-se, assim, o isolamento das “casas grandes” cedendo poder à formação das cidades, processo esse intensificado com a chegada da família real. A presença do rei de Portugal no Brasil representou uma mudança significativa na estrutura do poder que antes ficava restrito apenas às propriedades rurais, onde os senhores eram quem ditava as regras. O poder central do rei se opunha aos poderes descentralizados dos senhores, incentivando para que uma nova organização social de caráter urbano fosse se afirmando cada vez mais forte e hegemônica. Daí em diante, os parâmetros de organização social se modificam, transformando a sociedade quase aristocrática e rural em uma sociedade burguesa e urbana. Na verdade, tanto o urbano quanto o rural se formaram, preservando as características patriarcais que fazem parte da formação nacional.

Entretanto, a sociedade urbana do século XIX é muito mais complexa do que a rural, que cedeu espaço para valores burgueses surgidos com a chegada da família real. Freyre (1951, p.967) chama a atenção para a transferência de poder que se processou com a decadência do senhor proprietário de terras para o burguês intelectual (bacharel ou doutor), militar (bacharel da escola militar e politécnica):

A ascensão social do bacharel pobre que, abandonado aos próprios recursos, não podia ostentar senão croisés ruços de fatos sovados, ou, então, sujeitar-se a indiscrições de alfaiates pelos a-pedidos dos jornais; que não dispunha de protetores políticos para chegar à câmara nem subir à diplomacia, que estudara ou se formara, às vezes, graças ao esforço heróico da mãe quitandeira ou do pai funileiro; a ascensão do bacharel assim, se fez, muitas vezes, pelo casamento com moça rica ou de família poderosa.

O sentido do povoamento, iniciado com o trabalho escravo, nos remete ao próprio contexto histórico do “capitalismo comercial” e da subseqüente acumulação primitiva de capital. Só o escravo poderia trabalhar dentro da maximização de lucro para o tipo de produção instalada aqui. Ao examinar a questão do assalariamento, o sociólogo Kowarick (1994, p. 21) faz a seguinte colocação:

O assalariamento em massa mostrava-se inviável, não porque inexistisse uma população expropriada. A rigor, a expropriação já era uma condição prévia do sistema colonial, pois ao mesmo tempo em que se partiu a terra por meio de concessões de grandes glebas (capitanias e depois sesmarias) e se controlou o comércio pelo exclusivo colonial, impediu-se qualquer forma de produção primitiva voltado para a dinamização dos centros metropolitanos. Assim, mesmo em épocas posteriores, quando o número de livres e libertos era bastante superior aos de escravos, o assalariamento mostrou-se inevitável, porque esse contingente de indivíduos pobres poderia usar sua liberdade para reproduzir-se automaticamente, ao invés de se transformar em mercadoria para a empresa colonial.

A formação social gerada na Colônia estruturava-se a partir do escravismo, comandado por senhores. Isso representou um entrave para o pleno desenvolvimento de formas capitalistas de produção, travando, desse modo, o desenvolvimento nacional. E assim Kowarick (1994, p. 26) completa:

Após três séculos de existência, o sistema colonial não adquiriu dinamismo estável e crescente, bem como, ao impedir ramificações internas capazes de criar circuitos que levassem a formas alternativas de exploração econômica, deixou de originar núcleos duradouros e autônomos de acumulação.

Mesmo com o fim do Pacto Colonial, e a declaração de independência em 1822, o trabalho escravo continuou sustentando a economia nacional por mais 66 anos. A continuidade desse modelo de produção gerou a exclusão da população livre, que não possuía escravos nem terras. A introdução da lavoura cafeeira gerou um desenvolvimento econômico mais diversificado e dinâmico. O Estado Nacional absorveu parcelas do excedente de sua produção, segundo Kowarick (1994, p.37):

A mola de acumulação continua centrada na grande lavoura voltada para a exportação de artigos tropicais, mas, na medida em que se caminha pelo século XIX, o sistema cafeeiro forjaria um conjunto de efeitos multiplicadores, entre os quais as ferrovias, a indústria de beneficiamento e sacaria, além de proporcionar empreendimentos bancários. Malgrado essas transformações, o trabalho compulsório continuaria sendo a modalidade de exploração dominante por largos períodos após 1850.

Em 1850, proibido o tráfego negreiro, a primeira saída vista pelos proprietários deu-se com a formação do comércio interno de escravos. Depois, o que garantiu a expansão da lavoura do café foi o incentivo governamental em promover a imigração. Desse modo, os europeus que chegaram ao Brasil representaram a mão-de-obra que, incialmente,  integrou-se ao mercado de trabalho assalariado, num contexto econômico sustentado pela execução dos métodos e técnicas de uma agricultura escravista.

Devido ao predomínio de relações de trabalho baseadas no escravismo, os imigrantes ao chegarem no país se tornavam semi-escravos; os seus países de origem reagiram, ameaçando fechar a emigração. O Estado foi obrigado a “moralizar” as relações de trabalho livre. Houve uma pressão internacional para que as autoridades brasileiras criassem e mediassem os contratos entre proprietários e trabalhadores assalariados. O que se verifica é um paradoxo. Segundo Santos (1978, p. 84), foi preciso, de alguma forma, regulamentar o trabalho livre em um sistema econômico baseado em poucas monoculturas (café, cana-de-açúcar e algodão) voltadas para a exportação e sustentadas por uma mão-de-obra predominantemente escrava. Conseqüentemente, a chegada dos imigrantes gerou algumas mudanças nas estruturas sociais e econômicas; o trabalho remunerado começou a ser mais respeitado; houve um crescimento no mercado interno. Depois disso, não demorou muito para que alguns empresários, políticos e proprietários pensassem em investir na criação de um setor industrial-urbano. O desenvolvimento desse novo setor se tornou viável a partir de 1844 com a implantação do novo sistema tarifário que acabou a proteger as indústrias nacionais. Com a expansão de novos postos de trabalho, devido ao crescimento da produção de café, houve falta de mão-de-obra. A população livre, não devidamente aproveitada pela economia nacional, em meados do século XIX, era tão numerosa quanto a população escrava. De acordo com Kowarick (1994, p. 55):

Na medida em que as relações de produção fossem marcadas pelos rigores e horrores imperantes no regime de trabalho escravo, nada mais natural que a população livre encarasse o trabalho, definido dessa forma como alternativa mais degradada da existência. Transformaram-se [os homens livres] em ralé, antes de se submeterem às modalidades de exploração, cujo paradigma é alicerçado nos grilhões e chibatas das senzalas. Antes, a sobrevivência autônoma, numa espécie de economia natural de subsistência, do que a sujeição a regras de obediência e disciplina, nas quais prevalece um arbítrio, que está contaminado pelo uso e abuso inerente ao cativeiro.

De todo modo, a população livre sem posses sobreviveu à indiferença e à falta de políticas públicas. Não se submeteu, tão facilmente, aos valores de uma cultura escravocrata. Sabia dos métodos e práticas de trabalho adotado pelos senhores proprietários. Estes, por sua vez, discriminavam seus compatriotas expropriados, que eram vistos aos olhos dos senhores, e Kowarick (1994, p.102) afirma:

Desabilitados subjetiva e objetivamente para o trabalho disciplinado, nem por isso deixaram de ser incorporados ao processo produtivo, tão logo este o necessitasse: foi assim durante a escravidão, ou mais tarde, nas regiões cafeeiras estagnadas, para onde o imigrante não se dirigiu.

Significa que, por mais que a mão-de-obra nacional fosse excluída do desenvolvimento econômico, a necessidade capitalista de manter um exército de reserva acabou por forjar sua sobrevivência. Por outro lado, essa população se auto-reproduziu a partir de atividades de subsistência, tendo suas referências culturais sido formadas à margem de um sistema agro-exportador de caráter escravocrata. Assim, ainda segundo Kowarick (1994, p.112):

No discurso dominante, a instabilidade e indisciplina deixaram de ser marcos inerentes à índole dos nacionais. Não se trata mais de aversão congênita para trabalhar, fruto de espírito errante por natureza ou de uma mentalidade falsa e viciada, propensa, devido a uma degeneração irremediável, à vida fácil, ao alcoolismo e à imoralidade de toda sorte. Ao contrário, tradicionalmente estigmatizado de apático, preguiçoso ou vagabundo, o braço pátrio poderia e deveria ser regenerado, pois sua indolência era conseqüência do abandono a que fora delegado: afinal, ele já havia provado sua bravura na exploração de terras adversas, como as da Amazônia, onde fora ‘o mais corajoso e heróico dos colonos’, indivíduo capaz de suportar a penúria e a dor, atributos que só possui o nosso sertanejo do norte.


2 - Negros e mulatos: crescimento da população marginal no início do século XX

À mão-de-obra nacional vem somar-se os escravos libertados em 1888 com a Lei Áurea. Essas populações encontraram dificuldades para inserir-se no regime de classes sociais em formação na virada do século XIX para o XX. Nesta passagem, mudanças no contexto econômico assinalaram que o desenvolvimento capitalista teve maior expressão em zonas de grande concentração populacional, crescimento urbano e altos níveis de produção agrícola.

Fernandes (1978) considera que, após a desagregação da ordem social escravocrata e senhoril, o negro e o mulato tiveram o pior ponto de partida para a integração no regime de classes sociais em ascensão. Eles formaram o contingente da população nacional que não recebeu assistência do Estado para superar o momento de transição da desagregação da ordem social escravocrata e senhoril para a formação do regime de classes sociais no Brasil.

Nas duas últimas décadas do século XIX ocorreram uma série de mudanças que modificaram a composição sócio-econômica do país: o fim da escravidão, o início da república, o desenvolvimento de uma sociedade de classes, a formação de uma burguesia industrial, a ampliação do mercado de trabalho assalariado, a imigração de europeus e o crescimento acelerado das cidades, em especial a de São Paulo.
Todas essas mudanças devem ser levadas em consideração. Porque os ex-escravos encontraram dificuldades para participar dessa ordem social competitiva em transformação. Eles sofreram com o regime da escravidão que os deformaram para inserir-se numa sociedade de classes; e tiveram que competir injustamente com os trabalhadores estrangeiros. A maior parte dos negros e mulatos ficaram à margem do processo de desenvolvimento econômico, aproveitaram-se ocasionalmente dele devido aos seus próprios méritos pessoais ou aos relacionamentos que mantiveram com os antigos senhores.

Nas cidades de Recife, Salvador, Rio de Janeiro foram os serviços associados ao artesanato urbano que deram ao liberto condições de ascensão econômica e social.

Fernandes (1978) chama a atenção para as mudanças que se estabeleceram nas zonas de prosperidade econômica garantidas pela exploração do café. No entanto, considera que nas zonas onde os níveis de produção eram baixos, os ex-escravos tinham que escolher entre as condições semelhantes aos tempos de cativeiro ou ficar desocupados sobrevivendo da economia de subsistência; e se eles se deslocavam para as zonas de altos níveis de produção tinham que concorrer com os trabalhadores nacionais e com a mão-de-obra importada da Europa. Os trabalhadores nacionais formavam um exército de reserva, enquanto os trabalhadores estrangeiros possuíam maior familiaridade com o trabalho assalariado.

Na cidade de São Paulo, em fins do século XIX, ocorreu um rápido crescimento urbano e a “europeização” que agravaram a inserção dos ex-escravos no mercado de trabalho, o que dificultava ainda mais o seu ajustamento ao regime de classes sociais. Eles tiveram que disputar as oportunidades que não foram aproveitadas pelos estrangeiros. Estes ocuparam e monopolizaram todas as posições estratégicas da economia artesanal e do comércio urbano. Posteriormente, tornaram-se donos de fortunas consideráveis.

Restaram aos ex-escravos salvar sua dignidade de homens livres pela resignação em assumir os serviços residuais do meio urbano ou em entregar-se ao ócio e à criminalidade. Foram também levados a fazerem avaliações e aspirações sociais que os prejudicaram na concorrência de postos de trabalho com o estrangeiro. Este encarava o trabalho assalariado como um meio transitório para mudar de vida, enquanto os ex-escravos se sentiam na liberdade de fazerem o que bem entendessem. Por isso, recusavam certas tarefas que os remetiam ao tempo de cativeiro, além da não aceitação de qualquer controle direto ou à supervisão organizada, característica do trabalho assalariado.

Diferentemente da cultura da cana-de-açúcar, a empresa agrária cafeeira do Estado de São Paulo não se fechava sobre si mesma. Sua importância está associada à comercialização interna de produtos relativos ao processo de exportação, revitalização de núcleos urbanos e ao desdobramento do fazendeiro em desempenhar vários papeis socio-econômicos. Formou-se nesse Estado, relações que complementavam os interesses rurais e urbanos, exigindo do fazendeiro uma diversificação de suas funções. A fazenda de café se transforma em empresa, adaptando-se ao regime de trabalho livre e aos desdobramentos das relações de comércio provenientes do assalariamento da população.

No entanto, as práticas de dominação e os valores herdados da sociedade estamental e de castas impediam que a cidades assumissem valores burgueses, liberais e democráticos. Para que o meio urbano incorporasse esses valores modernos, foi necessário a criação de um sistema de produção que o equiparasse ao campo, tornando-o independente deste. Ainda assim, só meio século depois da abolição essas transformações se consolidarão, porque foi no sistema republicano presidencialista que se realizou a transição do antigo regime para a ordem social competitiva. De acordo com Fernandes (1978, p. 45):
Nada podia impedir que o “coronelismo”, como equivalente e substituto da “nobreza agrária”, convertesse o sistema republicano-presidencialista numa transação com o antigo regime e, principalmente, que a ordem social competitiva se ajustasse às persistentes daquele regime.

Para os ex-escravos, negros e mulatos, na quase totalidade, a sociedade de classes permanecia fechada e não igualitária. Sentiam-se longe de conquistar uma vida melhor. Eles sabiam bem o que não queriam. No entanto, não era claro para todos o querer coletivo. Não sabiam agir no interior da ordem social competitiva para lutar contra as péssimas oportunidades que lhes ficaram reservadas, após a abolição.

O negro e o mulato formavam um polo heteronômico e alienado, lutaram contra a situação que se encontrava na sociedade estamental e de castas, e continuaram a lutar do mesmo modo na sociedade de classes. Não tiveram possibilidades de aproveitar plenamente do regime de classes sociais em formação; à procura de trabalho, os ex-escravos acabavam encontrando alguém ocupando a função que desejavam. Por outro lado, não sabiam agir como trabalhador livre ou empresário. E sem o amparo dos senhores tornava-se mais difícil conquistar empregos. Passaram a viver iludidos com a falsa idéia de liberdade sofrendo com a própria ignorância, miséria e degradação social. Assim Fernandes (1978, p. 66) faz o seguinte argumento sobre o assunto:

A instabilidade ou a estabilidade dos vários círculos da “população negra” relacionavam-se diretamente à sua vinculação com a estrutura da economia e da sociedade. Porém, compre reter: 1ª) que somente em parte essa população se compunha de elementos com experiência ativa sobre o “meio urbano”;  2º) que as transformações deste foram tão rápidas e profundas, que mesmo esses elementos se viram, de repente, como estranhos numa “cidade estrangeira”; 3º) que as levas de pessoas pelas quais se promovia seu crescimento incessante não tinham traquejo com os serviços urbanos e procuravam ocupações periféricas e um existência discretamente marginal; 4º) que somente o estrato feminino da “população negra” teve, em bloco, condições favoráveis de transição mais ou menos estável para o novo estilo de vida.


Os ex-escravos não possuíam formas de vida social organizada, nem um sistema de referência capaz de lidar com a complexidade políticia, econômica e social que a vida na cidade lhes reservara.

Fernandes (1978) destaca a diferença que se processou entre ex-escravos do eito ou da lavoura e os da “casa grande” ou sobrado. Os que saíram do “eito” ou da lavoura tiveram uma trajetória de inserção ao sistema de classes mais sofridas. Porque eram menos qualificados e conheciam mal o branco, o temiam e submetiam-se passivamente aos seus desejos, não se arriscavam a pleitear empregos melhores, nem a romper com as expectativas que os condenavam a uma vida dura, ingrata e sem compensações; eram tímidos e ingênuos, preferiam sofrer calados e isolar-se dos companheiros melhor sucedidos; a sociedade de classes era mais fechada às suas habilidades.

Em relação aos do eito, os ex-escravos provenientes da “casa grande” ou do “sobrado” tiveram algumas vantagens. Porque conviveram com o “mundo dos brancos” recebendo uma educação melhor; adquiriram maior familiaridade e intimidade desenvolvendo algumas habilidades para lidar com a ordem social competitiva; as mulheres aprenderam sobre administração do lar, cozinha e costura; e a sociedade de classes era mais aberta às suas habilidades.

A exclusão do negro e do mulato foi tanta que até seus cultos foram proibidos, pois eram vistos no meio urbano como expressões culturais de atraso, que caracterizava as comunidades provincianas.

Assim, Fernandes (1978, p. 70) considera que a exclusão agravou o isolamento econômico, social e cultural dos ex-escravos. E identifica o estabelecimento de um terrível ciclo vicioso:

Essa exclusão, por sua vez, acentuou e agravou o isolamento econômico, social e cultural do negro, aumentando sua dependência e, provavelmente, o seu apego a uma herança sócio-histórica imprópria e desvantajosa. Os efeitos acumulativos dessa interação de fatores encadearam-se de tal modo, que fizeram do elemento negro o único agrupamento humano da cidade em que não se revela um mínimo de sincronização entre as tendências e os produtos da “urbanização”, da “mobilidade social” e da “secularização da cultura”.

Faltavam aos ex-escravos disciplina e responsabilidade para lidar com as implicações decorrentes do trabalho assalariado, pois se formulou uma idéia de que o escravo “não tinha cabeça”. Além disso, as mulheres negras e mulatas se tornaram o meio de sustentação da maioria dos homens. Desmoralizados, sofreram com a opressão dos policiais que estavam orientados pelo Estado a dispersar qualquer agrupamento social, em particular dos homens negros.

Se os ex-escravos “não tinham cabeça” era porque adquiriam pouca experiência para lidar com as técnicas culturais e sociais do ambiente urbano. A liberdade jurídica não lhes garantiu as outras duas liberdades necessárias, a moral e a intelectual. Desse modo, os primeiros descendentes dos negros e mulatos libertados pela Lei Áurea herdaram as conseqüências das condições que foram dadas aos país. Aos poucos, os ex-escravos foram aprendendo a “ter cabeça” para lidar com a realidade socio-histórica e a ordem social competitiva.


3 - Transição da base econômica nacional e populações expropriadas de 1930 a 1964

O Estado brasileiro consolidou a tendência de crescimento industrial com a expansão do modo de produção capitalista. Esta forjou uma organização centrada na alta exploração da mão-de-obra rural e urbana. A revolução de 1930 acelerou o deslocamento da base econômica do agrário-exportador para o urbano-industrial. Ao longo de três décadas as novas composições de forças sociais, implantação da legislação trabalhista e intervenção estatal contribuíram para o processo de deslocamento da base econômica e desestruturaram as relações sociais e políticas organizadoras da economia nacional.

A soma dessas mudanças econômicas, sociais e políticas criou condições institucionais para a expansão das atividades industriais ligadas ao mercado interno, o que resultou num novo modo de acumulação. As bases deste estruturaram-se a partir de ações do Estado na economia influenciando as relações entre capital e trabalho e entre zonas urbanas e rurais. O autor considera que, implantada a legislação trabalhista, um enorme impulso foi dado à acumulação, caracterizando toda uma etapa de crescimento econômico nacional. O processo de transição gerou, a partir de 1956, a predominância da participação industrial na renda interna. A mola propulsora dele foi o Estado.

A população pobre vivia num contexto econômico com altas taxas de exploração da força de trabalho, encontrando dificuldade para aumentar a renda. Enquanto o País crescia, a industria ganhava corpo, mas a distribuição de renda não mudava. Oliveira (1981) identifica que a legislação trabalhista teve um papel significativo no processo de acumulação, instaurado a partir de 1930. O salário mínimo foi interpretado como salário de subsistência e que deveria cumprir as necessidades alimentares do trabalhador. Foi pensado como quantidade de força de trabalho a ser vendida. Não existiu na legislação trabalhista, e nem nos critérios que definiram o valor do salário mínimo, a incorporação dos ganhos da produtividade no trabalho. Essas leis fazem parte de um conjunto de medidas destinadas a instaurar um novo modelo de acumulação. A exploração da mão-de-obra sustentou parte do processo de acumulação capitalista. Nas cidades, formou-se um exército industrial de reserva necessário à essa exploração, mantendo os empresários despreocupados quanto a oferta de mão-de-obra.

A agricultura contribuiu enormemente para a acumulação capitalista no Brasil. Segundo Oliveira (1981), ela não incrementou sua produção com máquinas e insumos, pelo contrário, utilizou-se largamente de técnicas arcaicas que vieram somar à acumulação primitiva de capital. Essa prática explorava os trabalhadores, não-proprietários, obrigando-os a realizarem benfeitorias nas fazendas com trabalho não-pago. A mão-de-obra barata e a não-qualificação dos trabalhadores geraram um grande exército de reserva para fazer jus ao desenvolvimento capitalista no Brasil. O País passou a desenvolver uma industrialização apoiada nesse fator exploração sem que as leis trabalhistas protegessem o trabalhador.

A legislação trabalhista igualava, reconvertendo o trabalhador especializado à situação de um não-qualificado reduzindo o valor do seu trabalho. Segundo Oliveira (1981), a regulamentação das Leis do trabalho operou a reconversão num denominador-comum de todas as categorias. Trabalhadores especializados nas cidades não garantiam a elevação dos salários porque sua base era estabelecida por baixo, ou seja, pelo menor salário. Nas cidades, o salário pago era superior ao das zonas rurais. Isto gerou um êxodo rural, aumentando o exército de reserva nos centros urbanos.

Operando na regulamentação dos demais fatores, além do trabalho, o Estado passou a atuar na fixação de preços, subsídios e gastos fiscais; intervindo na esfera econômica; instruiu o modo de acumulação para o qual a economia se inclinava naturalmente, recriando condições para um novo modo de acumulação. O Estado fez o que foi possível para alterar a organização do “velho mercado”, dando um impulso à nova organização capitalista até que esta ganhasse automaticidade.

A transição de uma economia para outra organização do funcionamento do mercado nascente não é automática, nem rápida; foi necessária a intervenção estatal para assumir controle de alguns mecanismos de mercado (diga-se de passagem do “velho mercado”) para alterá-los; como a crise de produção do café que recebeu uma nova orientação, adequando-se ao sistema econômico industrial-urbano com as conseqüências de sua acumulação. O produtor de café foi isolado da oferta e da procura de fatores, reorientando suas alocações de recursos em outros setores da atividade econômica. A crise de 1929 fez o preço do café passar por um período de instabilidade no mercado internacional. Foi preciso o controle governamental para fazê-la crescer ou diminuir, guardando certa distância das flutuações do mercado. O Estado operou transferindo recursos e ganhos para a empresa industrial, fazendo dela o centro do sistema. Oliveira (1981, p. 19) afirma:

No período de “transição”, não apenas não funcionam os automatismos econômicos da base anterior como, mais do que isso, não devem funcionar, sob pena de não se implantar a nova base. Por isso, os mecanismos de mercado devem ser substituídos por controles administrativos cuja a missão é fazer funcionar a economia de forma não-automática. Durante a transição, proliferam todos os tipos de controle, não somente na formação dos preços dos fatores como também no controle dos gastos dos consumidores.

A mudança econômica que se processou no Brasil necessitou de soluções para os problemas agrários. Havia um enorme contingente de mão-de-obra, uma grande oferta de terras e um Estado investindo em infra-estrutura. A reprodução das condições de expansão capitalista dependeu das práticas de “acumulação primitiva”. Utilizou do trabalho rural para reduzir o custo da mão de obra nas cidades; assim como os trabalhadores urbanos construíram suas próprias casas em fins-de-semana ou em horas de folga. Essas práticas envolveram uma série de fatores socio-econômicos que vieram somar-se à acumulação. A agricultura não dependeu da indústria para incrementar sua produção, até a década de 1960. A venda de tratores estava abaixo da venda de veículos de passeio. Enquanto esta tinha um volume de vendas ascendente, aquela engatinhava.

A mudança na hegemonia econômica desencadeou diversos processos que se tornaram difíceis para a população viver nas cidades. No campo, o trabalho era realizado com expropriação da força de trabalho. Oliveira (1981) considera que no campo formou-se um proletariado rural constantemente explorado pelo proprietário. Quando o trabalhador rural devastava a terra para plantar gêneros, garantindo a subsistência realizava um trabalho não pago para o fazendeiro. Esse sistema é conhecido como acumulação primitiva de capital. Nas cidades, os trabalhadores urbanos também realizavam trabalhos não pagos, chamado pelo autor de supertrabalho caracterizado pelas autoconstruções de residências. A distribuição de frutas por camelôs favoreceram enormemente os proprietários e produtores de gêneros agrícolas. Assim Oliveira (1981, p. 34) comenta:

Os serviços de comércio ambulante, de lavagens de automóveis realizados braçalmente, pequenas oficinas mecânicas destinadas à re-produção dos veículos, de consumo pessoal longe de serem excrescências e apenas depósito do “exercito industrial de reserva” são adequado para o processo de acumulação global e de expansão capitalista, e, por seu lado, reforçam a tendência à concentração de renda.

O comércio de produtos agrícolas era caracterizado como exploração do sistema capitalista, isto é, pela relação que o capital tinha com o trabalho. Os proprietários eram enormemente favorecidos pelos produtores de gêneros agrícolas. O resultado foi somente a acumulação nas zonas rurais, urbanas e no comércio. O sistema se beneficiou da mão-de-obra barata. O Estado respaldou essa mão de obra barata a partir da legislação trabalhista, afirmando uma relação entre trabalhadores e capitalistas, desvantajosa para o primeiro, não havendo diferenciação em termos salariais que dignificasse a função do empregado mais qualificado do menos qualificado. Ainda de acordo com Oliveira, 1981, p.35:

Uma não-insignificante porcentagem das residências das classes trabalhadoras foi constituída pelos próprios proprietários, utilizando dias de folga, fins de semana e formas de cooperação como o mutirão. Ora, a habitação bem resultante dessa operação, se produz por trabalho não pago, isto é supertrabalho. Embora aparentemente esse bem não seja desapropriado pelo setor privado da população, ele contribui para aumentar a taxa de exploração da força de trabalho, pois o seu resultado – a casa – reflete-se numa baixa aparente do custo de reprodução da força de trabalho – de que os gastos com habitação são um componente importante – e para deprimir os salários reais pagos pelas empresas. Assim, uma operação que é, na aparência, uma sobrevivência de práticas de “economia natural” dentro das cidades, casa-se admiravelmente bem com um processo de expansão capitalista, que tem uma de suas bases e seu dinamismo na intensa exploração da força de trabalho.

O consumo dos produtos industriais ficou restrito a uma pequena parcela da população. A classe média consumiu através dos crediários, e os estratos mais baixos da população ficaram privados dos bens de produtos duráveis. Enquanto o país apresentava índices sociais vergonhosos, a indústria instalada era voltada desde o princípio para uma minoria da sociedade consumir.


4 - Trabalho informal tendo como referência a conjuntura atual

A informalidade é uma dimensão atemporal da sociedade capitalista, demonstrando-se complexa e universal a todas as sociedades modernas. Não é produzida apenas em países subdesenvolvidos. Sua presença está entranhada no âmago das relações capitalistas de produção. Manifesta-se em zonas de inegável vocação capitalista, em empresas públicas e privadas, em instituições governamentais ou civis. Faz parte da dinâmica capitalista, porque o setor formal contém informalidades mais ou menos aparentes que são, em alguma medida, manifestações de um assalariado que perde sua materialidade relacional.

O estudo sobre a informalidade foi aprofundado nas duas últimas décadas do século XX. A análise, que se segue abaixo, limita-se ao final do ano de 1998, apresentando momentos difíceis para o país que enfrentou uma concorrência desleal e um Estado omisso com as questões sociais, permitindo o aumento do desemprego e a flexibilização do trabalho, além de ter legitimado impostos injustos.

O Estado renuncia cada vez mais às funções de empresário, de prestador direto de serviços sociais e de planejador do desenvolvimento econômico, assumindo, progressivamente, as funções de um moderno Estado gerencial. Despreocupando-se em defender os postos de trabalhos nacionais.

O Plano Real implantou abertura econômica e um Estado mais frágil. Segundo Malagute, 2000, p. 29:

As características do Plano Real implicam a existência de um Estado mais ágil, livre de inúmeras funções sociais que passariam a ser exercidas pela sociedade civil: o Estado do plano real deve poder ser maleável. Para tanto, necessita de um corpo legal menos restritivo, um conjunto de leis trabalhistas mais flexíveis, um contrato fordista (sustentado por uma série de gastos estatais) menos estrito e políticas de desburocratização do setor público que lhe permitam eleger o mercado como juiz, árbitro eficiente e imparcial dos conteciosos nacionais.

Nos indicadores econômicos genéricos não transparecem as condições reais da população brasileira. O PIB ou PIB per capita nada podem dizer sobre a geração de empregos ou a distribuição real das riquezas nacionais; um orçamento público deficitário não garante que o dinheiro aplicado fosse em áreas sociais; a estabilidade dos preços não permite avaliar sobre as variações dos salários. O autor considera que essas variáveis devem ser substituídas por outras mais sensíveis para compreender, adequadamente, a evolução da qualidade de vida das pessoas: distribuição dos rendimentos, evolução dos níveis de salários e remuneração, alocação das receitas públicas, estrutura ocupacional e respeito à legislação trabalhista. Afirmando, Malagute, 2000, p. 34:

Estes indicadores são fundamentais quando nossa ótica desloca-se do meramente econômico para o social, quando relegamos a um segundo plano o “bem estar” de entidades abstratas como “economia”, “nação” ou “país”, e preocupamo-nos, isso sim, com as condições de vidas concretas da grande maioria da população.

Os anos 80 marcam um dos períodos mais instáveis da economia brasileira. Foram aplicados à população diversos planos econômicos com o objetivo de controle inflacionário e crescimento econômico. Para Malagute, 2000, p.34:

Ao longo dos anos 80 presenciamos uma contínua deterioração da qualidade dos produtos e uma estagnação da produtividade da maior parte do parque produtivo nacional: uma deterioração e uma estagnação que vigorou até a primeira metade dos anos 90.

No contexto do Plano Cruzado (1986), os empresários adotaram estratégias que prejudicavam os consumidores, como os produtos que passaram a incorporar matérias primas de péssima qualidade, ou terem pesos ou substâncias abaixo dos declarados nas embalagens. Os trabalhadores tiveram seus direitos trabalhistas desrespeitados e as empresas se descuidavam da poluição que produziam.

No entanto, os planos heterodoxos que vigoraram entre 1986 a 1994 agravaram o processo inflacionário, a desorganização econômica, queda do poder aquisitivo dos salários e remunerações dos trabalhadores em geral. Malagute (2000, p. 38) pontua

[...] que o Brasil da opulência mostra-se insaciável. Seja em períodos de grande crescimento da produção (60-70), seja em épocas de recessão explícita (80), os mais ricos continuam a enriquecer, e os mais pobres a empobrecer. Em outras palavras, amplia-se continuamente o fosso social e o contigente marginalizado da população brasileira.

A população atravessou momentos difíceis da ordem sócio-econômica num momento igualmente frágil de redemocratização. Deve-se levar em consideração que o Brasil não possuía história democrática de movimentos populares e que os estratos mais pobres da sociedade foram completamente abandonados por qualquer política pública. Segundo Malagute (2000, p. 41)

Sabe-se hoje que boa parte da população brasileira viveu os anos 80 em condições de miséria absoluta. Vários organismos oficiais e não-oficiais constatam que 1/3 dos brasileiros obtém seu sustento através de biscates, ou outros tipos de trabalho precário, quase sempre complementados pela coleta de lixo, mendicância, prostituição (masculina e feminina), contravenção, tráfico de drogas, roubo ou pequenos delitos em geral.

O Plano Real está fundamentado em três medidas técnicas indissociáveis: taxas de juros elevadas para a estabilidade dos preços, valorização da taxa de câmbio e abertura comercial generalizada. Essas medidas são incompatíveis com o desenvolvimento social, porque não permitem brechas para a implementação de políticas de emprego, de melhorias salariais. Foi um plano que trouxe poucas conquistas modernizantes ao país e um quadro de catástrofe social.

A abetura econômica iniciada em 1990 transformou-se ao longo desta década numa concorrência internacional desleal. O governo brasileiro respaldou as garantias do livre exercício das forças de mercado permitindo o aumento do desemprego e da flexibilização do trabalho, além de legitimar impostos injustos. A sobrevivência (econômica e política) do Plano Real não permitiu a queda das taxas de juros,  nem assegurou os postos de trabalho, ou garantiu a distribuição fundiária. Por mais que os avanços tecnológicos e a abertura econômica fossem desejados o Estado não contemplou a questão de que estes, caso fossem mal administrados, retirariam postos de trabalho colocando a mão-de-obra nacional em uma situação de desqualificação e desemprego crescente.

A produção de bens duráveis e não-duráveis manteve-se voltada para uma pequena parcela da sociedade, os ricos. Estes garantiam o consumo da produção sem a necessidade de recorrerem ao crédito. A população pobre não consumia porque não tinha liquidez e o custo do crédito era elevado. Malagute (2000, p. 49) define o ponto de vista do governo federal como se o funcionamento das empresas e dos trabalhadores dissesse respeito apenas a eles, não haveria mais paternalismo e nem seria mais aceito o cooporativismo na política, por conseguinte, os parceiros sociais assumiriam suas responsabilidades.

Sempre existiu uma relação entre a economia formal e as atividades informais, na história nacional. Nem todos os colonos participaram diretamente do sistema socioeconômico português. Eles seguiram uma direção própria voltada à produção de uma precária economia interna ou de subsistência. Atualmente, verifíca-se uma realidade com aspectos semelhantes. No Plano Real, a renda do trabalhador informal aumentou em relação à renda do formal. O crescimento do trabalho informal remonta ao fim da década de 1960, gerando uma maior precarização do trabalho.

A informalidade faz parte da vida da maior parte dos trabalhadores brasileiros, além de ser uma estratégia para assegurar algum rendimento. Eles poderiam exercer em um emprego estável, serem bem remunerados mas, pela inviabilidade da estrutura do mercado de trabalho, muitos partem para tentativas do tipo: tornarem-se autônomos, pequenos ou micro-empresários. E na impossibilidade de formalizar o próprio negócio, eles migram para o setor informal, que é um dos últimos recursos, uma estratégia de sobrevivência, e não um sonho.

Deve-se levar em consideração que o setor informal necessita do formal para sobreviver, seja através de uma organização familiar, que o marido, camelô, recebe um financiamento da esposa, funcionária pública, para comprar as mercadorias. Como as grandes necessitam das pequenas e micro-empresas para aumentar a taxa de lucro, estas prestam serviços a preços mais baixos para manterem uma estrutura operacional a baixo custo, com alguma informalidade e precarização do trabalho. A ausência de fronteiras claras entre o trabalhador assalariado e o trabalhador por conta própria é ilustrada por Malagute (2000, p. 125)

Trabalhadores que, na incessante procura de formas de sobrevivência, adaptam-se como camaleões às contingências do dia-a-dia, adquirem cores e ares, antes, apenas encontrados em grupos sociais distintos ou mesmo antagônicos e reconstroem suas especificidades incessantemente, colocando em maus lençóis os pesquisadores menos atentos.

Muitos trabalhadores da construção civil obtêm rendimentos dentro e fora da empresa. No caso dos motoristas e ambulantes, Malagute (2000, p. 132) demonstra que o trabalho assalariado e o trabalho informal co-existem ou, mais genericamente, que o trabalho informal pode existir - paralelamente - ao formal no próprio espaço deste último.

As atividades de rua geram renda. Por isso, as pessoas estariam prestando serviços precários, em locais impróprios. O flanelinha, o camelô, o sorveteiro realizam atividades precárias e são completamente desprovidos de apoio do mercado formal. Adotam esses caminhos por diversos motivos. Mendes (1999, p. 29), após estudar a história de vida de alguns camelôs em Belho Horizonte, chama atenção para:

O deslocamento do trabalhador do setor formal (assalariado) para o setor informal (como ambulante, camelô), significa a sua inserção em um novo universo organizacional, onde a autonomia e a qualificação ganham contornos diferenciados e amplos.

Por que em vez de trabalhar para uma empresa, muitos realizam as atividades de rua, ou mesmo sendo assalariados mantêm práticas associadadas a informalidade? Já que, Malagute (2000, p. 158),

[...] o desejo de independência não passa de um mito, de uma lenda sustentada tanto pela necessidade dos trabalhadores obterem maiores rendimentos quanto por um romantismo nostálgico da parte de alguns pesquisadores.

Qual seria a solução para inverter esse problema? O desenvolvimento sócio-econômico? Em que medida essas práticas estão relacionadas com a cultura nacional e a trajetória histórica do país.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados aqui apresentados são de origem histórica, embasados em autores já referidos. Buscou-se analisar os fatos, através da observação e da comparação do pensamento dos autores.

Na contextualização histórica da população marginal ao final do século XIX analisou-se o desenvolvimento da cronologia histórica nacional, juntamente, com a formação das populações marginais.

Constatou-se na virada do século o aumento desta população num contexto de grande competitividade ecológica por espaços sócio-econômicos. A população negra teve dificuldade em inserir-se ao sistema de classes sociais em formação, sendo o Estado de São Paulo de grande representatividade para o País.

Com a revolução de 1930 a expansão capitalista criou uma nova realidade econômica, social e política com o crescimento industrial do país. A população pobre tornou-se o exército industrial de reserva.

As duas últimas décadas do século XX ilustraram que as “falhas” da economia formal foram preenchidas pelo setor informal.

A pesquisa bibliográfica procurou analisar as populações marginalizadas da ordem sócio-economica, ressaltando suas participações e contribuições à formação nacional. O objeto do estudo fundamental foi levantar questões básicas como: por que muitos têm tão pouco? Por que as mudanças sociais, políticas e culturais, que decorreram no processo de formação da história brasileira, não alteraram o quadro de miséria dessas populações? Os que não poderiam ser proprietários deveriam ser expropriados, porque a conlônia não era “terra” de povoamento, mas de exploração. Os negros que deixaram de ser escravos e não ganharam a liberdade moral e cultural Também, não receberam assistência do Estado ou da Igreja. O exército industrial de reserva não recebeu terras ou auxíio do Governo para adquirirem autonomia. Os informais exerceram suas funções precariamente por não serem contemplados com os planos econômicos do governo.

Os expropriados da colônia, os excluídos da sociedade de classes, os explorados pelo sistema capitalista, os marginalizados da economia formal contribuíram para a formação de um mercado dinâmico paralelo e complementar.

Houve uma contribuição concreta dos produtores de gêneros de subsistência, artesãos, camelôs, camponeses, todas as profissões esquecidas, mas, necessárias para o funcionamento “normal” de uma nação em desenvolvimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS:

ALMEIDA JÚNIOR, João Batista de. O estudo como forma de pesquisa. In: CARVALHO, Maria Cecília de (org). Metodologia Científica: Fundamentos e Teorias. 5ª ed Campinas: Papirus, 1995.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. 2.vols. III ed. São Paulo: Editora Ática, 1978. V.1.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob regime de economia patriarca. 8ª ed. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1964. 2.vols.
–––––– Sobrados e Mocambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olímpio Editora, 1951. 2.vols.

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. 4ª ed. São Paulo: UNESP, 1997.

KOWARICK, Lúcio. Trabalho e vadiagem a origem do trabalho livre no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.

MALAGUTI, Manoel Luiz. Crítica a razão informal: a imaterialidade do salariado, 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2001.

MARCONE, Marina de Andrade e LAKATOS, Eva M. Metodologia Científica. São Paulo; Atlas, 2000.

MENDES, Alessandra Gomes. O trabalhador-camelô. Considerações sobre a atividade dos camelôs em Belo Horizonte. Monografia em sociologia. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1999.

PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 35ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

OLIVEIRA, Francisco de. Economia Brasileira: Crítica a razão dualista. 4ª ed. Petrópoles: Editora Vozes. 1981.

REGO, Rubem Murilo Leão. Sentimento do Brasil: Caio Prado Júnior. Campinas: editora Unicamp, 2000.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem Burguesa e Liberalismo Político. São Paulo: Duas Cidades, 1978. (Coleção História e Sociedade). 67-117.

VERGARA, Sykvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas, 1997.